Pepê, menino sem casa que virou guardião da pista, ensinou skate antes de ter escola ou futuro. Sua vida e morte revelam a ausência do Estado e inspirou o Método A e a ABC do Skate Brasil, criando educação onde o Brasil só ofereceu abandono.
(1986: a origem invisível do instrutor de skate no Brasil)
Antes de existir um método, existiam jovens, adultos, adolescentes sonhadores — e um menino tentando sobreviver.
Antes de existir uma pedagogia, existiu uma ausência.
Antes de existir a ABC do Skate Brasil, existiu Pepê — o instrutor que nunca recebeu instrução, o educador que nunca teve escola, o guardião que nunca teve quem o guardasse.
Pepê, com 13 anos, em 1986, encarnava tudo o que o Brasil não queria ver: fome, abandono, ausência total do Estado e, ao mesmo tempo, uma potência educativa bruta, rara, visceral.
Ele orientava, protegia, organizava o fluxo da pista, resolvia conflitos, acolhia iniciantes, advertia oportunistas.
Sem diploma, sem salário, sem casa, sem futuro.
E, ainda assim — ou justamente por isso — fez o que nenhum órgão público, nenhuma instituição, nenhuma autoridade fez: acolheu, incluiu e ensinou.
A verdade é simples e brutal:
se Pepê tivesse sido ensinado, formado, amparado, reconhecido, teria chegado à maioridade; provavelmente, em 2014, ainda estaria vivo.
A Educação que o deixou morrer não pode reivindicar sua fidelidade e sua dedicação na pista, dia após dia.
Pode apenas assumir a dívida.
Foi dessa dívida que nasceu a ABC do Skate Brasil.
Primeiro, o Método A — um trabalho inicial de transformar em linguagem, estrutura e responsabilidade um sistema de ensino da Cultura Skateboard para crianças e jovens, criado para mudar uma Sociedade Cultural e Esportiva que não permitia o uso de skate em suas dependências, mas que prometeu, diante da apresentação de um método, rever essa proibição.
Depois, a Metodologia A — já consciente de que não bastava um sistema de ensino: era preciso formar pessoas, construir repertórios técnicos, produzir segurança, ética, autonomia, equidade, leitura corporal, consciência social.
E, enfim, a ABC do Skate Brasil — o sistema que consolidou esse legado invisível e transformou o que era sobrevivência improvisada em formação profissional.
Mais de 500 instrutores já foram formados por essa estrutura pedagógica.
Instrutores que atuam em todas as regiões do Brasil e em vários outros países.
Gente que leva às pistas, escolas, projetos sociais, praças e instituições aquilo que Pepê nunca recebeu, mas já praticava: cuidado, orientação, pertencimento, rigor técnico, leitura do ambiente, respeito, acolhimento, comunidade.
Cada instrutor formado pela ABC carrega um fragmento do que Pepê foi — e do que o Brasil não soube salvar.
Porque, no fim, a pergunta que inaugura este Caderno de Cultura não é apenas histórica:
Como um menino sem casa ajudou a plantar a semente de todo um sistema educacional?
A resposta é ainda mais dura:
Pepê precisava sobreviver — e, através da Cultura Skateboard, pôde sonhar.
Nós continuamos sua obra porque precisamos reparar, para que, além de sonhar, todas as pessoas que têm direito de receber educação possam realizar.
Pepê, muito provavelmente, é o ponto zero da pedagogia do skate no Brasil.
Ele foi o embrião do Método A.
Foi a centelha da Metodologia A.
É a pedra fundamental da ABC do Skate Brasil.
Pepê tinha 13 anos em 1986.
Era pequeno — dificilmente chegaria a 1,65 m quando adulto.
Filho de uma mãe negra, nascida em 12/12/1941, dependente química, isolada e fragilizada. (o documento de idade da mãe, era o único documento que Pepê possuía e ostentava)
O pai, ausente, desconhecido — o nome dele, um espaço em branco no documento.
O lar, inexistente.
A comida, incerta.
A escola, um lugar que ele nunca conheceu.
Pepê foi alfabetizado pelos paralelepípedos do quarteirão onde circulava, lendo:
sinais tortos
placas quebradas
rótulos descartados
sacolas de lixo que pudessem conter algo de valor
Era semi-analfabeto, mas tinha uma inteligência crua, afiada, moldada pela urgência de sobreviver.
Sua casa era a praça.
Seu teto era a pista.
Sua família eram os transeuntes que vinham e iam.
E ali, entre uma jaula de macacos — símbolo grotesco de um urbanismo ultrapassado — e uma pista de skate que servia de abrigo improvisado, Pepê encontrou a única esfera onde tinha algum valor. À noite, Pepê reinava no alto das escadarias que davam acesso a plataforma da Pista.
Para o Brasil de 1986, o skate era:
coisa de vagabundo
brincadeira de desajustado
moda sem futuro
indisciplina urbana
sinônimo de desordem
A polícia reprimia.
Adultos torciam o nariz.
Professores detestavam.
A imprensa ridicularizava.
Mas quem andava de verdade — quem respirava skate — sabia o que só décadas depois o mundo reconheceria:
O skate sempre foi uma plataforma de desenvolvimento humano físico, social, cultural, cognitivo e emocional.
Pepê não tinha o vocabulário acadêmico para afirmar isso.
Mas vivia essa verdade todos os dias.
Porque, mesmo sem perceber, o skate lhe oferecia:
equilíbrio
coordenação
leitura corporal
senso de comunidade
pertencimento
ética
responsabilidade
capacidade de ensinar
expressão
e um motivo concreto para continuar vivo
Pepê não tinha nada — mas ali havia uma pista de skate.
E isso o fazia ser alguém, ali, naquele chão.
Pepê estava sempre na pista. Sempre.
A ponto de sua presença se tornar parte da paisagem.
Não era “ajudante”.
Não era “monitor”.
Não era “professor”.
Era o guardião da pista, o filtro humano entre o caos e a convivência.
Ele fazia tudo isso:
explicava onde ficava o risco (a quina, a rachadura, o buraco, o fluxo da descida)
alertava pais ingênuos
orientava iniciantes sobre como pôr o pé, como cair sem quebrar o braço, como transitar entre ciclistas e skatistas
mediava conflitos
indicava lojas e veteranos onde conseguir peças boas
acolhia quem tinha medo
barrava quem chegava com má intenção
E fazia isso em troca de uma única coisa:
o direito de existir naquele território — onde, finalmente, era alguém.
Era o pacto velado, típico das ecologias de rua:
quem emprestava o skate a Pepê tinha trânsito seguro
quem afrontava Pepê era advertido
quem precisava de ajuda recebia
quem abusava do lugar era repreendido
quem andava ali, sob seu olhar, tinha um “campo de proteção”
Sem diploma.
Sem título.
Sem salário.
Sem skate próprio.
Mas com autoridade moral real.
Pepê, sem saber, já era instrutor.
Instrutor de um Brasil que não reconhecia instrutores.
Pepê tinha tudo para ser um grande educador do skate.
Tinha:
sensibilidade
leitura corporal
coragem
naturalidade ao ensinar
vontade verdadeira de ver o outro evoluir
Mas não tinha absolutamente nada ao redor:
nenhuma escola o acolheu
o Estado o ignorou
a assistência social não o conheceu
oportunidades dignas nunca existiram
O skate o salvou do anonimato —
mas não conseguiu salvá-lo do país que mata seus meninos invisíveis.
Pepê entrou no tráfico.
Caiu jovem.
Morreu.
E aqui nasce a dívida histórica:
Pepê ensinou dezenas de crianças e adultos — mas ninguém ensinou Pepê.
1986 marcou o início da redemocratização:
esperança nas urnas, miséria nas ruas.
A escola pública brasileira:
expulsava os pobres
segregava os diferentes
punia a vulnerabilidade
não fazia busca ativa
não acolhia crianças em risco
responsabilizava o aluno, nunca a sociedade
Crianças como Pepê não tinham chance.
O Estado tampouco existia:
assistência social quase nula
proteção infantil inexistente
políticas públicas ausentes
abrigos que mais machucavam que cuidavam
uma cultura política que normalizava a morte precoce dos meninos da rua
Era um país que deixava morrer — e fingia que não via.
A cultura skateboard sempre existiu à margem.
Não por rebeldia intrínseca, mas porque ninguém abriu espaço para ela nos meios formais.
Antes de projetos sociais,
antes de instrutores,
antes de profissionais,
antes de escolas,
quem ensinava skate?
Meninos como Pepê.
Daí nasce a urgência:
profissionalizar o que era instinto
lapidar o que era improviso
dar método ao que era sobrevivência
dar futuro ao que antes terminava em tragédia
transformar talentosos invisíveis em educadores reconhecidos
A Metodologia A surgiu dessa consciência feroz e tardia:
o skate não podia continuar dependendo do acaso — nem ser opção apenas para privilegiados.
Quem menos tem bens, mais deve receber educação.
Quem ensinou sem diploma, mais merece formação.
Quem sustentou a cultura nos bastidores deve receber mais reconhecimento que quem a explora para inflar ego, vaidade ou sustentar vícios e caprichos.
ESTUDAR é antídoto contra todo e qualquer tipo de abandono.
“Dar as primeiras orientações de skate era meio de se divertir um pouco e evoluir”
ou
“Dar as primeiras orientações de skate era meio de sobreviver um pouco e não morrer.”
orientar era sobrevivência
andar era alívio
ensinar era moeda social
pertencer era luxo
Pepê não tinha casa, lar, teto, escola, proteção, nome de pai, alimento certo ou futuro.
O skate era a única esfera onde:
ele tinha alguma autonomia
algum prestígio
algum sentido
algum poder — mesmo que frágil
Assim, a pista virou território.
A presença dos pais e dos amigos mais velhos funcionava como um escudo invisível.
Ser amigo do Pepê era quase um salvo-conduto: um “passe” tácito para circular naquele território sem ser importunado.
Era a velha ecologia da rua: o pacto velado, a proteção provisória que nasce do pertencimento, não da justiça.
Quem ensina alguém que nunca teve um mestre?
Quem forma um educador quando o próprio sujeito cresceu sem referência, sem cuidado, sem modelo?
Alguns skatistas da região andavam todos os dias, às vezes duas, três sessões por jornada.
Sabiam nomear manobras, agrupar famílias técnicas, explicar plants, aéreos, bordas.
Já tinham viajado para competir.
Tinham repertório; tinham reputação.
Foi ali que Pepê encontrou um norte.
Foi ali que ele se nutria daquilo que nunca tivera: convivência, linguagem, técnica, reconhecimento.
E, aos poucos, Pepê começou a organizar as sessões, orientar quem chegava, conquistar respeito real — aquele respeito que não se compra, não se herda e não se inventa.
Pepê começou a evoluir.
Começou a aprender a ensinar — não o truque, mas o gesto. Não a técnica, mas o cuidado. O que é raro.
Mas não havia ninguém para ajudar Pepê a se manter vivo.
Nenhum familiar para garantir o mínimo: um lugar para escovar os dentes, tomar banho, fazer uma refeição inteira, ter rotina básica, receber afeto estrutural.
Quando os skatistas voltavam para suas casas, para vidas que continuavam além do skate, Pepê voltava para o nada.
E o nada cobra caro.
Foi aí que a fome — não apenas de comida, mas de pertencimento e existência — fez o que sempre faz: cooptou o menino antes que o mundo adulto aceitasse enxergar sua urgência.
E então vieram os julgamentos.
Julgamentos de pessoas que dariam todas as chances para seus próprios filhos acertarem; que desculpariam recaídas, fracassos, deslizes; que pagariam terapia e comprariam tempo.
As mesmas pessoas que esperavam de Pepê — um menino abandonado — disciplina, autocontrole, resiliência, força de vontade e capacidade de trabalho que nem adultos privilegiados sustentam sem apoio.
A verdade incômoda é simples:
Esperam que órfãos sejam heróis morais.
E que sobreviventes da negligência sejam exemplos de autocontrole.
Quando fracassam, a sociedade chama de “desvio”.
Quando sobrevivem, chama de “milagre”.
Nunca chama de responsabilidade coletiva.
A Educação é um método contra todo e qualquer tipo de abandono.
A cultura skateboard é a metodologia contra toda e qualquer forma de ausência de responsabilidade coletiva.
*Pepê - O Paulinho - "Negão Paulinho" (figura caricata que vivia na Sub - Pista de Skate de Pelotas - em meados dos anos 80)