Adolescência ferida, exclusão e dor moldam a tensão entre entorpecimento e criação. Bukowski mostra que traumas viram estilo e que genialidade não nasce de embalagens: skatistas, artistas e eruditos podem imitar, mas só o autêntico cria.
A adolescência começou a doer pela superfície. As inflamações não eram simples manchas: ardiam. Ardiam como brasas acesas pelo rosto e pelo alto do corpo. Cada manhã era inaugurada pelo cheiro agressivo de pomada — aquela mistura ácida de álcool e cânfora — espalhando-se pelo quarto como se anunciasse o início de mais um dia difícil. Vestir a camiseta do colégio era punição: o tecido raspava nas feridas como lixa em madeira crua. Ele baixava a cabeça — não queria ver, no espelho, o que o mundo sempre via primeiro que ele.
Na escola, a exclusão tinha método. Houve os que desviavam o passo para não caminhar ao lado. Houve os que riam baixo, riam curto, riam cruel. Houve a quadra poeirenta, onde os capitães dos times chamavam qualquer outro antes dele. Não era incompetência esportiva — era hierarquia social. Era a marcação silenciosa do lugar que lhe reservavam: o quase-fundo do poço.
Quando o tratamento médico o afastou da escola, não houve descanso — houve suspensão. Um ano inteiro de hospital público, filas de madrugada, consultas rápidas demais, salas frias demais, cheiros de antisséptico e olhares cansados. A vida virou uma sequência de receitas e retornos.
Foi nesse vácuo que o álcool apareceu. Primeira vez: um gole num copo de plástico, oferecido por alguém que mal contava como presença. O impacto queimou, aqueceu, embaralhou. Pela primeira vez em meses, a dor — da pele e de existir — perdeu forma. Não sumiu, mas desbotou. Ele percebeu o risco, mas apreciou o silêncio interno.
Os livros vieram de outro lado, como se alguém tivesse acendido uma lâmpada num corredor escuro. Encontrou o primeiro esquecido numa sala de espera. Abriu sem intenção. Leu sem saber por quê. E, página após página, reconheceu ali uma mente estrangeira e familiar ao mesmo tempo — alguém que também estranhava o mundo, alguém que precisava traduzir um mal-estar que ninguém mais traduzia. A linguagem iluminava o que o álcool simplesmente apagava.
E assim nasceu uma tensão que moldaria sua vida:
o entorpecimento, que afrouxava a dor;
a palavra, que a revelava.
Charles Bukowski — nascido Heinrich Karl — carregava na pele a dureza de sua história: pai violento, mãe submissa, espancamentos, humilhações, alcoolismo e uma adolescência marcada por acne severa e isolamento brutal. Seu corpo, como o de muitos adolescentes feridos, era território de guerra. Sua vida, como a de poucos, tornou-se matéria-prima de literatura.
Ele aprendeu cedo — e nos ensinou depois — uma verdade que quase ninguém ousa transcrever:
os traumas moldam estilo, cadência e entropia.
E há instantes — raros, perigosos, imprevisíveis — em que um entorpecente libera um clarão criativo. Isso pode acontecer no skate radical, na música, na política, na literatura. Mas esse clarão é reservado a pouquíssimos.
E aqui entra o ponto que precisa ser dito:
Não basta comprar um skate.
Não basta comprar um caderno, uma caneta, ou hoje, um computador.
Não basta pagar um tatuador, criar uma banda de punk rock, vestir a fantasia do “outsider”, se autoproclamar isso ou aquilo.
Não basta ser o dono da bola.
O dono da piscina.
O dono da pista.
O dono das pistas.
Não basta ostentar um comportamento de guerra se a alma treme na primeira esquina.
Porque:
O gênio vem sempre antes da obra.
Primeiro o Pelé — depois o Santos.
Primeiro Vivaldi — depois As Quatro Estações.
Primeiro Dante — depois A Divina Comédia.
Primeiro a galinha — depois o ovo.
Primeiro Nelson Rodrigues — depois a frase:
“Apenas os gênios dizem o óbvio.”
E o álcool, e seus afins, até pode revelar uma centelha — mas jamais criá-la.
Acreditar que os bilhões de imitadores que habitam o planeta carregam essa força é mais insano que a própria insanidade.
A genialidade não está na garrafa, na fumaça, no equipamento, no diploma, no palco ou no teclado.
Ela surge — quando surge — naquele instante raríssimo em que alguém consegue criar em meio à mediocridade ao redor.
“Toda a genialidade consiste em ser criativo em meio à mediocridade.”
Os mérdios podem beber todos os dias, trocar de roupa como trocam de humor, ostentar cursos, colecionar certificados, aprender oito línguas, posar em museus, recitar discursos, montar currículos perfeitos. Nadarão na superfície da cultura como turistas existenciais, satisfeitos com a espuma.
Os gênios, por outro lado, padecem das mesmas dores que tantos mérdios também enfrentam — mas com um detalhe decisivo:
possuem a fagulha da autenticidade.
A autenticidade não é comportamento; é condição.
Não é máscara; é natureza.
Não é performance; é destino.
Os gênios são os que recusam a imitação, mesmo quando isso lhes custa aceitação. São aqueles que encaram o “ser ou não ser” não como frase teatral, mas como sentença vital. São os que atravessam a solidão, o desconforto e a incompreensão sem dissolver a própria verdade.
E, como sempre foi e sempre será:
somente eles saberão responder às suas próprias gênesis.