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O Drop do Downhill

Frederico Manica

Um drop quase fatal revela o limite entre vida e morte. O skatista vê seu corpo no asfalto e sua alma suspensa, guiada pelo Anjo da Impermanência, que promete reencontro. Ele retorna ao corpo como quem renasce: cada descida é amor, queda e novo início.

Drop do Downhill – Escárpica Sensorial das Descidas


ISAGOGE DAS DESCIDAS – MINI GUIA DO LEITOR

Esta Escárpica Sensorial trabalha com três territórios simultâneos:

  • o skate,

  • a experiência humana do risco,

  • as formas do amor e da entrega.

O leitor encontrará mudanças bruscas de temperatura textual: ora técnica, ora sensorial, ora filosófica. Isso é intencional. O objetivo não é linearidade, mas camadas com inércia, tato, aceleração, descontrole, tomadas e retomadas, de fôlego, de tempo, de ação e de intenção.  

Você notará três registros convivendo:

  • Bruto — termos secos, diretos, físicos.

  • Contemplativo — conceitos existenciais e metafísicos.

  • Sensorial — imagens fortes, às vezes sensualmente destacadas, com contornos quase táteis, porque o corpo é parte do tema.

Nenhuma dessas vozes explica a outra; todas se complementam.
Se em algum momento parecer muito sensorial ou abstrato para seu entendimento instantâneo, avance: o texto muda de registro justamente para incluir leitores e experimentações distintas. O texto é para todos e todas que já ousaram descer, e subir, e descer novamente desejando subir, apesar dos atritos da existência, apesar das pedras nos caminhos.

O glossário ao final não busca “traduzir”: ele funciona como mapa, não como manual.
Alguns verbetes são amplos e ensaísticos; outros são minimalistas. Isso também é intencional: cada entrada tem o tamanho que a sua importância exige, não um padrão fixo.

Este guia faz só um pedido:
leia aceitando que vidas intensamente vividas operam em limiar —

  • entre o concreto e o simbólico,

  • entre a queda e o sentido,

  • entre o risco e a entrega.

A leitura, como o drop, começa quando você decide soltar.


PRÓLOGO DAS DESCIDAS — ENTRE O AMOR E O ABISMO

Há um instante em que a ladeira deixa de ser apenas inclinação e se torna destino.
Um instante tão fino, tão estreito, tão frágil quanto o sopro que separa o nascer do morrer.
E foi nesse fio — nesse corte de luz — que ele despencou.

Um drop quase mortal.
Um encontro sublime.
Uma dança com o inevitável.
A queda. O impacto. O clarão.

Ao final da ladeira, lá onde o asfalto ainda era apenas promessa,
uma trilha de britas abertas pela obra mal acabada da cidade.
E, como Drummond profetizou,
tinha uma pedra no caminho.
A pedra — sempre a pedra — que escolhe os seus.

Entre a vida e a morte, ele viu tudo em dois planos:
o corpo descendo, a alma subindo.
O corpo dobrado no chão, a alma ereta no alto.
A matéria entregue à gravidade,
o espírito entregue ao mistério.

Ele assistiu a si mesmo deitado na estrada
por onde zuniu todas as suas aspirações.
Viu a carne que carregou seus sonhos,
a pele que segurou seus medos,
as pernas que confiaram nas rodas.

E no vértice entre o que termina e o que retorna,
um anjo.
Não um anjo de catedrais — mas o Anjo da Impermanência,
aquela que ri de relógios,
aquela que sabe que tudo muda,
aquela que guarda o segredo do que continua.

O anjo pousou ao lado dele
com a mesma calma de quem segura o fim na palma da mão
e disse, sussurrando o que só os quase-mortos escutam:

— Ainda não.
Ainda não é a hora.
Nós vamos nos reencontrar.
Para descer.
E para subir.
E para descer outra vez.

As palavras abriram uma clareira dentro dele.
Um eco tão antigo quanto Lawrence da Arábia atravessando desertos,
tão livre quanto Peter Fonda cortando estradas infinitas em Easy Rider.

Porque a vida, ele percebeu ali,
é tão tênue quanto a decisão de aparecer no mundo.
E nascer — nascer é o primeiro drop,
a primeira entrega à gravidade,
a primeira queda rumo à luz.

Suspenso no alto, o jovem sentiu a promessa do reencontro
como quem sente o sol rasgar a névoa de dentro para fora.
Sentiu amor ao redor.
Sentiu amar dentro.
Sentiu ser amado acima de qualquer medo.

E quando o anjo, com seus olhos de infinito, abriu espaço,
ele aceitou.
Aceitou voltar.
Aceitou a carne.
Aceitou o peso.

E então desceu do próprio espírito
como quem dropa outra vez a ladeira prometida.
Reentrou no corpo como se reentrasse na vida.
Atravessou a si mesmo
como atravessa um corredor de vento.

Respirou.
Abriu os olhos.
E entendeu:

Este é o prólogo.
O prólogo de todas as descidas.
O prólogo de todas as quedas que não batem, as quedas que arrebatam.
O prólogo de todo amor que salva.
O prólogo de quem vive no limiar,
entre o chão e o céu,
entre o toque da roda.

Entre o Viver e o Viver, o toque da eternidade!

Sobreviver é para a coisa que existe.
Viver é para o Ser que transcende a própria autenticidade.

Porque quem já despencou no limite,
quem já se viu do lado de fora de si,
quem já conversou com o anjo da hora adiada,
sabe:

Descer é amar.
Voltar é promessa.
E cada drop é um renascer.


O DROP DO DOWNHILL

Um simples impulso — um pé que empurra.
Um corpo que aceita
— e você se lança na velocidade
como quem escolhe viver de verdade.

Começa devagar e começa a acelerar.
E você se acostuma, passa a depender de amor,
de descer, e de amar.

A descida é sensação pura:
o vento que rasga,
o asfalto que chama,
o coração que dispara.

E é por isso que o drop se parece tanto com o amor e com o amar.

Porque amar também é isso: entregar o corpo e a alma sabendo que existe risco, sabendo que tudo pode acabar de repente, sabendo que o chão está perto — mas escolhendo descer mesmo assim.

No downhill e no amor, o que nos move não é a segurança,
é a coragem.

E o risco iminente não afasta — ele convoca.

No pódio do downhill: em 1º, em 2º e em 3º!
A descida. Luta contínua, pelo drop impecável.

Explicar a ladeira é explicar o amor, o amar.

1º A descida é solar, é sensorial, é visceral.
2º O amor é solar, é sensorial, é visceral.
3º O amar é solar, é sensorial, é visceral.

E subir, a subida é o atrito.

Descer a ladeira. Por amar, por amor.

Ame-se, e desça. Despudoradamente. 1, 2, 3.

Ladeira abaixo.
A lomba, a rampa, a descida.

Dropar é início afoito, amor em descoberta,
o gesto de se permitir amar — e amar descontrolada.

Descer, descer, descer.
Descer para sair do limbo da sobrevivência.

Aurora no despencar:
cabelos de Alvorada que ardem por apressar,
por viver, por entender-se, por ser encantada.

Desembalada, desvestida. E se atira.

Abre o macacão!

Desiste da solidão do topo.
E se escancara em absolvição como água de cachoeira.
E se evapora em queda espraiada.

Se despe para a gravidade, se encaixa para sentir, se funde no sábio.
Se engravida de saber, de instante, de sabor, de prazer.

Fecha o macacão!

Ladeira abaixo: velocidade, aceleração.
Peito arfante, eriçado, raspante —
peito altar, púlpito, palco.

Os cabelos, fogos em labaredas solares.

Reprece despudorada: birra, mimo, charme, sedução,
jogo de persuasão.

A lomba é dela, é ela.
A montanha subindo pelo seu pescoço.
Não é ela quem desce — é a montanha que sobe por ela.

Dia de drop.
Promessa. Montanha. Ladeira.

Gosto. De ser. Colocada.
De cima para baixo.

Soltar a descida:
de pé, pé, pepé — pisa e pressiona,
inércia parada em movimento,
empurrando só o necessário.

Empurra, e se solta vertiginosa.
O corpo decide.
A cabeça responde.
O instinto procura a linha de chegada.

São separadas ao nascer:

  • mulheres que não descem,

  • mulheres que descem brincando

  • e mulheres que descem para valer.


AS QUATRO DEFINIÇÕES SENSORIAIS

Na manha — o ronronar da gata — a espera.
Fio de seda enrolando no pulso,
som que não pede licença, apenas pulsa.
Cheiro de leite quente derramado no colo do sol,
sabor de mel escorrendo lento pela garganta do dia.

Na noite — o orvalho na folha — molhando a pista.
Lágrima que a lua prometeu nunca deixar secar,
gota precisa escorrendo sem pressa,
toque de ouro líquido arrepiando a pele da terra,
gosto de névoa que se dissolve na língua.

Na moita — o ninho da pássara — desfila.
Segredo de plumas e sombra,
ventre onde o óvulo ainda não sabe que voará.
Perfume de terra úmida com baunilha de asa,
algodão-agridoce desmanchando entre os dentes do vento.

Na manhã — o suspiro da madrugada — desaba.
Último adeus da escuridão,
hálito que se dissolve antes de ser nomeado.
Sopro de café que embaça o espelho,
brasa escondida sob cinturas.


A DOURAÇÃO DO CORPO QUE DROPA

Jorro de luz alva em queda livre.
Se lança agressiva, querendo mais que dando.
Começo inclinada, largada, à deusdarada —
à Deusa do aclive, a Deusa Dourada.

Diminui a luz.
Afina o silêncio.
Aproxima a respiração.

Guarda — e a não-palavra tem pressa.
Estende o tempo.
Entrega a promessa.

Deixa o portão aberto,
vira o corpo que escuta,
deleitamento da crina que relincha e se arremessa.

Eu fico inteiro também —
resistente, atento, presente.


O VOCABULÁRIO DOS PEDIDOS QUE MOVEM O CORPO

Diga que ama — beijo na sacada.
Diga que adora — taça re-derramada.
Diga que se amarra — cintura desdevorada.

Pede para voltar — convite para dançar.
Pede para ir junto — desejo de confessar.
Pede para ser explicada — confissão sussurrada.
Pede para ficar — ondas duplicadas.


A REPRECE DESPUDORADA — EXPANSÃO SENSORIAL

Torrente luminescente faiscante.
Lá dentro — dentro do voo — pedra de montanha íngreme.

Morde os lábios, amarra a boca, cede a nuca,
alonga as línguas: corpo dropando por fora e por dentro.

Na noite, o orvalho na folha é lágrima lunar,
gota que escorre, toque que arrepia,
gosto de névoa dissolvida na ponta da língua.

Na moita, o ninho da pássara: segredo de pluma,
perfume de terra molhada,
baunilha de asa, algodão que o vento morde.

Na manhã, o suspiro da madrugada:
hálito que some antes do nomear,
brasa sob cinturas, sopro que reacende.

Diminui a luz até sobrar o contorno do corpus-desejo,
véu de âmbar tingindo pele de ouro velho.
Afina o silêncio até ele cortar como cristal.
Aproxima a respiração até que seja lei —
vapor com jasmim e sal.

Guarda a palavra: punhal dentro do peito,
metal frio contra músculo quente.
O tempo estica entre o quase, o já e o me dá,
azedinha que raspa, gruda, não solta.

A promessa não é dita — é o intervalo:
estalo elétrico antes da trovoada,
gosto da aurora antes do beijo.

Deixa a porta entreaberta,
corpo virado pra dentro e pra fora,
escuta a frase que nunca esqueceu:
cheiro de lençóis novos guardando o calor anterior.

E eu fico inteiro:
rocha que não curva,
quartzo que risca vidro,
falcão que mede vento,
plumagem que treme com o menor sopro,
presente como o agora irrepetível,
pulso que late contra pulso.

Diva que apaixona — beijo na sacada:
sol atrás da cortina,
clarão que cega, sal na boca.

Diva que adora — taça re-derramada:
vinha descendo pelo braço,
cheiro de uva esmagada,
culpa quente no peito.

Divã que amarra — cintura desdevorada:
laço apertado até o ar faltar,
seda cortando pele,
sabor metálico da mordida.

Pede pra voltar — dança que não retorna,
giro desenhando madeira,
salto batendo como tambor no peito.

Pede pra ir junto — boca que abre antes da palavra,
hortelã e fogo movendo segredos.

Pede para ser explicada — sussurro em crochê,
veludo quente se abrindo na concha do ouvido.

Pede para ficar — ondas duplicadas,
mar batendo duas, três, quatro vezes no mesmo ponto:
uma pra apagar, outra pra marcar, outra pra morder
sal, lambida, lâmbida!

Concha que guarda rugido de oceano,
almíscar agarrado nos cabelos suplicantes
sobre costas infinitas.


O DIA DA LADEIRA

Desesquecida de tudo mais: hoje é dia.
Dia de vencer.
Dia de drop.
Dia de despencada.

A toda. À lada.
Serenal acelerada.

Dia de gozar a montanha subindo,
dia de gozar a promessa inteira,
até a base.

Dia de ser colocada:
de frente, frente a frente,
nos desfiladeiros.

O desafio.
O ladeiro.

De costas.
De baixo.
Em cima.
Por cima.
Acima.
E alada.

É a toda.
É a Lada.
É a tudo.
É a Ladeira.

Toda. Tua.
Ou nada.


GLOSSÁRIO — DAS DESCIDAS

Drop
O instante inaugural. O corte da hesitação.
A entrega ao declive, onde o corpo aceita e a alma assina.

Ladeira
Espaço inclinado entre o risco e o gozo.
Montanha deitada, promessa em declive.

Lomba
A irmã bruta da ladeira: irregular, imprevisível, viva.
Onde a gravidade desafia sem piedade.

Descida
Verbo que arrasta o corpo, verbo que empurra a alma.
A direção inevitável das entregas.

Inércia
A pausa antes do destino.
A matéria pedindo coragem para mover-se.

Velocidade
A oração acelerada do corpo.
Reza sem palavras, rito sem capela.

Aceleração
O momento em que o corpo deixa de ser corpo
e vira intenção pura.

Quase-morte
A fronteira tênue onde o espírito experimenta sua própria luz.
Lugar onde anjos conversam com quem ainda não terminou.

Impermanência
A única lei verdadeira da ladeira.
Tudo desce. Tudo sobe. Tudo muda.

Anjo da Impermanência
A entidade que segura o instante entre o fim e o retorno.
O guardião das quedas que não matam.

Corpo
A matéria que cai, levanta, raspa, arfa e insiste.
A casa temporária da alma.

Alma
O que sobe quando o corpo desce.
A parte que assiste, que ama e que lembra.

Roda
O círculo do destino.
Onde a vida toca o chão e o chão responde.

Impacto
O encontro abrupto com a realidade.
O ponto final que se recusa a fechar a frase.

Pedra no Caminho
Profecia drummondiana.
O obstáculo inevitável que ensina, fere e revela.

Asfalto
A pele negra da ladeira.
Calor, fricção e memória.

Brita
O dente da montanha.
Fragmento que morde o poliuretano, o osso e a vaidade.

Linha
O traço invisível que corta a descida.
Destino que só o instinto enxerga.

Instinto
O piloto interno.
A bússola selvagem que sabe antes de saber.

Queda
A correção da soberba.
A oferenda que se faz para continuar vivo.

Ressuscitar
Voltar ao corpo depois de ver a luz.
Reassumir a matéria como quem reassume um amor.

Promessa
A palavra silenciosa entre o anjo e o sobrevivente.
Jura de reencontro nas ladeiras futuras.

Reencontro
A ladeira mística onde dois destinos se cruzam de novo.
Sopro, lembrança, retorno.

Nascimentos
O primeiro drop: a descida do espírito para dentro da carne.
A queda original.

Viver
Descer com significado.
Encarar a gravidade sabendo que ela também protege.

Sobreviver
O estado bruto, anterior ao milagre.
Viver sem ter percebido ainda o porquê.

Renascer
Dropar outra vez depois do impacto.
A vitória silenciosa.

Descidas por Amor
A arte de entregar-se ao declive não por ousadia, mas por vínculo.
Caminhar para o abismo sabendo que alguém te puxa de volta.

Descidas por Amar
A versão vertical do afeto:
descer junto, subir junto, cair junto, voltar junto.

A Ladeira Prometida
O território onde corpo e alma fazem acordo.
A estrada que só aparece para quem já esteve do outro lado.

Tags: Cultura Skateboard