Manifesto de Guto Jimenez sobre Skate & Música: das garagens dos anos 1970 ao skate punk, ele mostra como o skate é vanguarda sonora e contracultura – e questiona se, na era das playlists prontas, o skatista ainda desbrava novos sons.
por Guto Jimenez / Prefácio Editorial AG5
O som das rodas, dos rolamentos, do raspar dos solados gastando o asfalto sempre foi suficiente. Mas o skate nosso de cada dia, o skate das gerações que decidiam ir para as ruas, não para ser validado, receber likes e engajar, mas para viver, ser o que preferiam ser, apesar de uma sociedade que rejeitava identidade, autenticidade e criatividade, sempre que podia se integrava perfeitamente, como se tivéssemos sido feitos para completar algumas bandas, e as bandas tivessem nascido para completar a nossa arte.
Dos hinos imortalizados por várias gerações, das variações de ritmos e estilos musicais incorporados naturalmente por modalidades e crews que sentiam as ondas sonoras construtivas, em ressonância cultural — aos hits efêmeros de jovens que fazem qualquer coisa para se sentirem parte de turminhas que compram o total look em lojas de shopping center, tentando pertencer ao que dita o atual mainstream.
Nessa atual luta para definir qual é o tipo de som que está no DNA da Cultura Skateboard — quais as variantes sonoras entram em sincretismo nas sessões de skate de todos os tempos e quais são os intrusos, oportunistas, pegando carona num movimento que nasceu para desafiar o sistema — queremos abrir uma reflexão.
O skate sempre foi contracultura. Sempre foi a voz de quem não tinha voz. O ritmo de quem estava pouco se lixando para o modismo. Sempre foi cenário, trilha e moldura de uma Cultura que queria ser autêntica, legítima, endêmica — em si mesma. E que nunca precisou se vender ao que é mais “adequado” para o mercado, para o marketing ou para os conglomerados.
Mas… quanto a música ainda impacta na Cultura Skateboard hoje?
A ruptura veio com barulho, velocidade e contestação: o punk.
No Rio, o movimento não apenas encontrou o skate — ele nasceu dentro dele, na pista de Campo Grande.
Na São Paulo dos anos duros, em que a ditadura sufocava sonhos, um skatista chamado Maurício “Shit” Tamarozzi berrava no microfone dos Inocentes e ajudava a gravar o primeiro disco de punk nacional.
Aqui, skatistas eram considerados “mendigos de asfalto”.
Lá, punks eram vistos como “ameaça”.
Juntos, eram tudo o que o Brasil não queria ver.
E, justamente por isso, eram tudo o que o Brasil precisava.
Ao mesmo tempo, o mundo via Caballero tocar no The Faction, via JFA, TSOL, Drunk Injuns — via o skate não só inspirando bandas, mas formando-as.
Era a primeira grande fusão cultural do skate: não moda, não tendência — identidade.
“A PRIMEIRA HERESIA: ANDAR OUVINDO SONORIDADES DISTINTAS!”
“QUANDO O PUNK E O SKATE SE ENCONTRAM E NADA MAIS FOI IGUAL!”
“O SKATISTA É DESBRAVADOR!”
“O MAINSTREAM CHEGA, O OLHAR FICA, MAS O OUVIDO… SE PERDE.”
Por Guto Jimenez
No início, era qualquer coisa.
Desde que me entendo como skatista – comecei em 1975, ou seja, há meio século ou cinco décadas –, a música sempre esteve junto do skate, seja em sessões ou eventos de toda a espécie. E olha que eu pratiquei quase todas as modalidades, em todos os terrenos possíveis: no flat do freestyle, nas ladeiras do downhill, DHS e slalom, nas ruas usando o que tivesse como obstáculos, em transições de todos os tamanhos... Não importava o terreno, a música sempre esteve lá.
No início não havia essa de “skate rock”, ou qualquer outro ritmo que fosse diretamente associado ao carrinho; em meu primeiro pico, as rampas da garagem do prédio onde eu morava no Flamengo, o som vinha do rádio do carro de um de nossos pais. Era de lei sintonizar na Rádio Mundial (no dial 860 do AM) e deixar rolar os rocks, os pops e os funks que estivessem tocando no momento. Só um pouco depois, quando passei a frequentar a Pirâmide (um pico clássico da região e o mais antigo do Brasil na atualidade), fui percebendo que a galera do skate ouvia uns sons que não tocavam nas rádios, como Blue Öyster Cult, Ted Nugent e Black Sabbath, e sempre tinha alguém com um aparelho portátil com toca-fitas nas sessões tocando rocks diferentes do que os Led Zeppelins, Deep Purples ou AC/DCs de todos os outros lugares.
Eram sonoridades distintas, mas não muito distantes daquilo que os fãs de rock estavam ouvindo.
A identidade do skate punk.
A ruptura com o status quo musical veio logo depois, com o ritmo que sempre foi associado ao barulho e à velocidade e que se encaixou como uma luva enquanto som pra embalar os rolés: o punk rock. Aqui no Rio, então, a simbiose foi muito além, já que o próprio movimento punk em si surgiu na pista de skate de Campo Grande. O tal “Rock Brasil” estava sendo formado em vários lugares ao redor do país, com as primeiras bandas chegando às FMs e atingindo um público cada vez mais amplo. Na Cidade Maravilhosa, então, havia um contraste bem nítido. A galera da Zona Sul achava graça do “chope e batatas fritas” da Blitz, ao mesmo tempo que usavam camisas estampadas e circulavam pelo Baixo Leblon; do outro lado da cidade, jovens de preto e jeans surrados se entupiam de “sangue do diabo” (cachaça + groselha), ouviam Inocentes, Dead Kennedys e Exploited no talo e circulavam entre a Cinelândia e o Pistão.
Eu morava na Zona Sul e era punk, portanto vivia entre esses dois mundos tão opostos entre si.
Mas não era só o Rio que era “skate punk”, muito pelo contrário; sim, aqui foi a terra do Coquetel Molotov, a 1ª banda do gênero do país, cuja formação tinha 3 skatistas (Jorge Luiz de Souza “Tatu” (RIP), Lúcio Flávio Lima e Olmar Lopes) e um músico de profissão, o Cesar Ninne. Mas, no Brasil, o agora veterano skatista Maurício “Shit” Tamarozzi pode ser considerado como o primeiro da espécie, já que ele era o vocalista na formação dos Inocentes que gravou as músicas da banda na coletânea “Grito Suburbano”, o primeiro álbum de punk rock nacional da história. A despeito disso, uma parte bem significativa dos punks paulistanos odiava o skate, pois achavam que era “coisa de boys” e “alienados”; não se deve esquecer que aqueles anos eram da ditadura militar, nos quais a liberdade de expressão plena era um direito ainda a ser adquirido por completo. O carrinho era “brincadeira de criança” ou “distração de adolescente”, o punk era visto como “sujo e perigoso”. Agora imagina juntar os dois, numa época de censura e intolerância a tudo aquilo que fosse “diferente demais”; eu e meus amigos da mesma geração sabemos o que passamos, e não acredite que foi fácil.
O cenário lá fora era outro: o fera Steve Caballero tocava no The Faction e havia várias outras bandas com skatistas na formação, como Big Boys, T.S.O.L., Drunk Injuns, JFA, Shitlickers... O Suicidal Tendencies fortaleceu o link com o crossover entre o punk e o metal, com muito uretano por trás da banda pela ligação do vocalista Mike e seu irmão Jim Muir, um dos Z-boys originais e dono da marca Dogtown. Até o Red Hot Chili Peppers se valeu do interesse da galera pra se projetar primeiro na cena independente, pra depois se transformar num dos nomes mais consolidados do mainstream musical da atualidade.
Sempre na vanguarda...
Desde esses tempos de skate punk, comecei a notar um fato bem curioso: alguns dos sons e bandas curtidos por nós, skatistas, acabavam indo parar no mainstream algum tempo depois. Sou capaz de desfilar uma boa variedade de nomes de gêneros aqui, como o heavy metal, o reggae, o já mencionado punk rock, o hardcore, a new wave, o ska, o hip hop, o funky metal, a música eletrônica, até mesmo o onipresente trap. Se fosse mencionar as bandas e artistas, teria de escrever dezenas de nomes e ainda assim teria esquecido de alguém importante... Esse viés de desbravadores musicais sempre fez parte de nosso universo, de tal forma que houve uma época em que até mesmo as gravadoras passaram a prestar atenção naquilo que a gente estava ouvindo, só pra saber o que poderia fazer sucesso mais adiante. Os vídeos de skate têm uma participação decisiva e fundamental na formação musical de muita gente; esses filmes lançaram nomes expressivos como The Offspring, Pennywise e Green Day, além de uma infinidade de bandas que nos despertavam a curiosidade e nos impulsionavam a buscar por mais informações sobre aqueles artistas. Quem nunca deu um pause numa fita de vídeo ou num DVD pra checar os nomes das músicas e das bandas, que atire a primeira pedrinha na frente das rodas...
A contracultura e o vanguardismo sempre estiveram associados ao skate de uma forma ou de outra, é algo que até faz parte do ethos do carrinho; o fato de olharmos pras próprias cidades com um olhar diferenciado, procurando transições, paredes inclinadas ou obstáculos em todos os lugares, talvez nos faça sermos mais conectados com tudo aquilo que nos cerca do que alguém que não é skatista.
Fazendo um fast forward pra atualidade, vejo que o tal “olhar de skatista” não mudou em quase nada, a despeito da enorme quantidade de pistas de skate existentes por aí. Acredito com convicção que, mesmo que existisse um skatepark perfeito em cada bairro, o nosso velho hábito inconsciente de procurar e achar picos nos lugares mais inesperados possíveis jamais seria perdido. Onde tiver um corrimão com espaço pra entrar e sair, e/ou uma ladeira com pouco movimento, e/ou uma parede inclinada, e/ou uma transição perdida, e/ou uma quadra com piso liso – ali haverá uma possibilidade indiscutível de rolé que será enxergada por skatistas.
... mas não pra sempre.
Bem, se essa parte da caça de picos de nossa identidade não mudou tanto assim, onde foi que perdemos o rumo de sermos vanguardistas musicais?!
É preciso analisar o skate sob uma ótica contemporânea. Hoje em dia, ser skatista é muito mais normal do que nas antigas, não é mais visto como alguém antissocial, rebelde, avesso à autoridade e perturbador por natureza como antes. As famílias até incentivam a prática – algumas se envolvendo até demais e exagerando em algumas de suas ações –, mas o fato é que atualmente mais pais enxergam o carrinho de forma mais atenta aos benefícios (apurar os reflexos, aumentar a autoconfiança e a concentração, instigar a resiliência) do que há alguns anos. Por outro lado, cada vez mais pais chegam a exacerbar em suas intervenções em sessões e em campeonatos, a ponto de as entidades do esporte terem de criar códigos de conduta pra membros de equipes técnicas e acompanhantes em eventos. Onde antes a diversão era obrigatória, agora parece ser algo opcional, tantos são os interesses envolvidos e sonhos inoculados. Sinal dos tempos.
A verdade é uma só: o skate entrou no mainstream pela porta da frente. Aquela atividade marginalizada virou modalidade de competição das Olimpíadas; desde 2016, o ano em que virou esporte olímpico, o cenário foi obrigado a amadurecer mais rápido e de forma mais consistente do que nos 50 anos anteriores. Sem dizer que a aceitação foi mútua, ou seja, o skate também passou a incorporar elementos da cultura pop em seu meio ambiente. Existem skatistas que têm contratos com empresas de segmentos bem distintos, como bancos, montadoras de veículos, telecomunicações, bebidas energéticas, celulares. Paralelo a isso, também existem skatistas que são embaixadores e embaixadoras de marcas fashion, um negócio que sempre procurou se inspirar na contemporaneidade.
Nesse processo todo, parece que o interesse por buscar novas sonoridades acabou ficando em segundo plano. É bom que se frise que quase não existem mais surpresas nas formas de se ouvir música atualmente, pois o componente aleatório que fazia parte dos álbuns e das emissoras de rádio parece ter ficado no passado. Mesmo com a possibilidade de escolha de repertório nas plataformas de streaming musical, a quantidade de usuários que a usam é mínima. Afinal de contas, é muito mais fácil aceitar uma playlist pronta de punk rock ou de trap do que montar as suas próprias trilhas sonoras pros seus rolés. Talvez se fizessem uma pesquisa dedicada entre skatistas, o percentual de quem monta a sua própria lista seria maior em comparação a outros grupos, mas já não tenho tanta certeza disso.
No afã de se tornar popular, o skate acabou mudando toda a sua essência – e a falta de interesse em desbravar novas sonoridades talvez seja uma parte dessa mudança.
Guto Jimenez é uma referência histórica do skate brasileiro, com uma trajetória que atravessa décadas de dedicação, inovação e serviço à cultura do carrinho. Skatista desde 1975, percorreu todas as modalidades do esporte e se destacou também como locutor, jornalista e formador de profissionais. Desde 1984, integra equipes técnicas de campeonatos e atua como jornalista especializado, colaborando com publicações icônicas como Visual Esportivo, Yeah!, Skatin’, Tribo Skate e Cruiser Skateboarding.
Sua voz se tornou inconfundível nas competições, sendo o único brasileiro a narrar etapas nacionais de circuitos mundiais em todas as modalidades do skate desde 1988. Na comunicação, marcou época como produtor e apresentador de programas de rádio desde 1986, com passagens emblemáticas pela Fluminense FM e pela Rádio Cidade, onde comandou o lendário Studio Skate. Como editor da Cruiser Skateboarding, consolidou uma publicação especializada em ladeira, longboard e freestyle.
Além disso, é tradutor especializado em textos técnicos para o setor de petróleo e gás e para eventos internacionais de skate. Desde 2021, atua como comentarista online em eventos locais, nacionais e internacionais, além de apresentar e roteirizar o podcast Skt Etc. Também contribui para a formação de novos profissionais pela CBSk, ministrando cursos que qualificam locutores, árbitros e coordenadores de competições em todo o Brasil.
Com uma trajetória movida por paixão, rigor e compromisso com a cultura do skate, Guto Jimenez é um dos grandes protagonistas na construção, transmissão e evolução dessa história no país.
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Tags: Cultura Skateboard