Blog -> Viamão, 1989 - A Essência do Skate Longe dos Holofotes

HomeBlogViamão, 1989 - A Essência do Skate Longe dos Holofotes

VOLTAR PARA BLOG

Viamão, 1989 - A Essência do Skate Longe dos Holofotes

Fabio Branco

Entre a poeira das lombas e o brilho do asfalto, Fábio Branco revisita Viamão de 1989, onde o skate era resistência e irmandade. Uma crônica real, feita de suor, amizade e liberdade — o simples e eterno ato de andar.

Breve História do Skate em um dos Muitos Interiores dos Grandes Centros

Viamão, 1989 — A Essência do Skate Longe dos Holofotes


Resumo Editorial

Em seu primeiro ensaio autoral — visceral, cru, marginal, poético-realista, existencialista — o instrutor e skatista Fábio Branco revisita as raízes do skate do interior, Viamão, Rio Grande do Sul.
Do interior da alma.

De um tempo sem internet, mas repleto de criatividade, ele descreve com precisão e emoção o nascimento de uma cultura que viria a moldar sua vida — o skate como forma de resistência, de afeto e de pertencimento.

Uma crônica que é, ao mesmo tempo, memória, manifesto e agradecimento àquilo que o formou como homem, pai e professor.

Os nomes citados nas passagens que Branco imortaliza, nessa escrita biográfica e testemunhal, são um enorme reparo histórico — um exercício literário em uma era em que o jornalismo parcial, tendencioso e polarizado entre política e futebol trata com descaso as manifestações autênticas e autóctones que representam a verdadeira alma de quem transforma existência em experiência.

Um registro para a SKATEPEDIA, para os Registros Akáshicos, para o Éter, para o Toluol, para o cimento queimado, para a resina, para o verniz.


Viamão, 1989. Interior de Porto Alegre.

Tempos sem mídias digitais, em que as crianças, diante de tantas limitações e da pobreza, usavam apenas a criatividade para brincar e se divertir.

Num lugar de pouco asfalto e muitas lombas de areião, o carrinho de lomba era o brinquedo preferido — a primeira sensação de deslizar sobre rodinhas.

O skate em Viamão era coisa rara, quase clandestina. Todos, absolutamente todos, se conheciam.
A cidade não era dividida por bairros, mas por paradas: 45, 46, 50 e o Centro.

Eram quatro grupos de skatistas que formavam a cena local — Centro, 50, 42 e 45/46/47 — que juntos não passavam de doze praticantes.
Eu era um deles.

Ver outros skatistas era um evento raro e empolgante — um momento de aprendizado, de troca de manobras, de comparação de estilos.
E todas as crews desaguavam num único ponto: a Rua do Lazer.

Aos domingos, o centro da cidade era fechado e o asfalto perfeito virava o nosso templo.
Rampas em 45 graus, caixotes improvisados e pilhas de skates serviam de obstáculos para ollies.

Lá estavam grandes nomes locais — Cri Cri, Marcelo 41, Montanha — e, me arrisco a dizer, eu e o André.
Cada um com seu estilo, acreditando ter manobras únicas.
A atmosfera era visceral, impossível de descrever.

Queríamos que as outras crews se aproximassem — esse era o objetivo.
Ninguém queria ser melhor que o outro, até porque cada um tinha seu jeito. Comparar não fazia sentido.

Éramos vistos de muitas formas: intrusos, loucos, baderneiros, heróis, vilões, marginais, esquisitos, corajosos, fugitivos, habilidosos ou exilados — e tudo isso tinha um pouco de verdade, um pouco de exagero e uma tentativa de diminuir a nossa alegria, que irradiava.

Todos éramos aficionados.

Nossos ídolos não eram as celebridades internacionais.
Não eram os Tonys, Hosois ou Rodney Mullens — até porque quase ninguém os conhecia.
Os verdadeiros ídolos eram os locais, os que faziam a coisa acontecer com manobras cheias de identidade.
Valia mais a raridade do que a perfeição.

O Ganso, o Pig, o Fuinha, o Bambi, o Macaco… todos tinham apelidos — quase uma regra.
A palavra bullying não existia, mas o conceito sim. Para nós era apenas folgar — sem freio, sem mimimi.
Servia pra rir, pra corrigir e pra fortalecer. Ninguém ficava de fora.

Aprendíamos manobras na raça, na insistência.
De uma tentativa nascia outra, e assim cada skatista criava sua própria identidade.
Os nomes rústicos das manobras nem importavam.
“Grande merda um nome”, a gente dizia.

As transições começaram com os precursores Pigmeu, Fuinha e Cardeal.
Eles construíram mini rampas em casa, e a gente caminhava longas distâncias pra chegar lá — sem saber se alguém estaria presente, já que não existia mensagem pra combinar.

Foi através deles que descobrimos uma das maiores e mais antigas pistas do Brasil: a Swell.
Lendas eram contadas sobre o Alemão do Ho Ho Plant e o Tomate, que puxava de aéreo pra dentro da cuia — um bowl fechado e traiçoeiro.

Vi o Ganso descer de roll-in na cuia e dominar as transições do snake, enquanto o Pig mandava inverts e varials com naturalidade.
Esses eram nossos ídolos — skatistas locais, que a gente podia ver de perto.

Esses caras mantinham a pista viva, cuidando dela quando os donos originais — a turma do campeonato de 1979, o primeiro do Brasil — já tinham deixado a chama apagar.

Apesar disso, os viamonenses eram streeteiros.
Conhecíamos cada buraco, cada faixa lisa do asfalto.
Andávamos de madrugada, quando o movimento era menor, explorando ruas e esquinas, fugindo dos olhares desconfiados.

Éramos vistos como marginais e drogados — e éramos mesmo, no melhor sentido.
Adorávamos brigas, skatadas e acertos de conta com vizinhos.

Nossa limitação de pistas, peças e tênis era extrema.
Andávamos com o que tínhamos.
Muita coisa era repasse dos outros — algo natural entre os skatistas.
Fazíamos isso pra cena não acabar e pra ninguém ficar de fora por falta de equipamento.

Skate shops? Duas apenas, e em Porto Alegre: Pandemônio e Viking.
Moleques de 11, 12, 13 anos juntavam trocados vendendo sucata e ferro pra comprar qualquer coisa.
Não era raro ver o André (Andrius) e o Negão Marcelo arrastando uma geladeira até o ferro-velho.
Ferro era dinheiro — e dinheiro era skate rodando.

A polícia da época ainda carregava o peso da repressão dos anos 80.
Andar de skate em grupo era motivo pra denúncia, barulho, gritaria e pisos quebrados da vizinhança.
Paredão, surra e skate levado eram rotina.

Quem não conseguia fugir perdia o skate — e era a pior coisa que podia acontecer.
Perdi dois: um pra Polícia Militar e outro pra Rodoviária.
Fugi outras cinco vezes.

Muitos quase desistiam.
Montar outro skate era difícil, e tudo vinha de repasse entre amigos.
Quando sem dinheiro, trocávamos peças por qualquer coisa: jogo de botão, calça, camiseta, até carrinho de controle remoto.
Mas ninguém da crew ficava sem andar.

Tudo era skate.
Vivíamos isso.
Saíamos da escola ao meio-dia e, às 13h, já estávamos na rua.
Sessões até as 18h. Depois, das 19h à meia-noite, mais uma.
O skate estava sempre com a gente.

Nos fins de semana, invadíamos festas de garagem — sujos, suados, com uma “arma” nas mãos: o skate.
Skatistas eram raros e únicos.
Causávamos medo nos “esportistas da bola” e chamávamos atenção das meninas — principalmente das que não se encaixavam em grupo algum.
Essas meninas diferentes muitas vezes faziam parte da nossa crew.
Quem tinha meninas na crew era mais respeitado.

A maioria de nós tinha problemas em casa.
O skate era refúgio, terapia, muleta emocional.
Muito antes dos discursos modernos sobre inclusão e diversidade, o skate já fazia esse papel.
Porque o skatista da época era minoria.

Cada manobra nova era uma explosão:
gritos, risadas, o som dos rolamentos, a descida das lombas, as improvisações entre calçadas e tampas de bueiro — e milhões de risadas a cada tombo.

Anos mais tarde, já com trabalho, estudos, filho e casamento, lembro de ficar girando as rodas do skate de olhos fechados, escutando o barulho e lembrando daqueles dias.
Essa irmandade era única.

Andar de skate era pagar um preço — e todos estávamos dispostos.
Era a melhor sensação do mundo: estar com os amigos de fé, rindo e dividindo a mesma singularidade.
Ser skatista.

Nunca perdíamos a chance de agregar um novo skatista ou simpatizante.
Era simples: o skate unia quem precisava ser acolhido.


Uma vez skatista, sempre skatista… será?

Os skatistas dos anos 80 e 90, especialmente os do interior, passaram por muita luta pra se manter andando e evoluindo.
Entramos na chamada “falácia do custo irrecuperável”: não temos registros das sessões, apenas lembranças e histórias guardadas na cabeça.
Nos tornamos lendas de nós mesmos.

Hoje, muitos de nós somos pais — e fazemos de tudo pra que nossos filhos andem, recuperando o que abrimos mão lá atrás.
Não falo dos pais de beira de pista, que nunca viveram o skate, mas dos que foram formados por ele.

Quem começou nos anos 80/90 e ainda anda hoje, os 45+, são guerreiros.
Muitos abriram mão de tudo pra continuar.

Os jovens de hoje só entenderão isso quando precisarem dividir o skate com a vida adulta.
É aí que se vê quem realmente ama o skate — não por essência ou verdade, mas por resistência.

A medida é simples: o quanto você abriu mão pra continuar andando — e ainda assim não parou.
Isso é amor.

O skate, afinal, é simples.
Mas o mundo mudou.
Hoje o skate virou esporte — com regras, instrutores, líderes, marcas e toda uma estrutura.
E, como em qualquer modalidade, vieram também as desigualdades.

Mas algo se perdeu.
Não há mais desafio em começar.
O acesso é total, o esforço é mínimo.
Falta o gosto do diferente, da singularidade.
Faltam os que só tinham o skate e a crew como amigos.

Talvez por isso sejamos nostálgicos e azedos com o “skate instituição” que se formou.
Às vezes, parece uma seita, um desfile de egos e vaidades.
Todo mundo quer representar algo, ter parcela nesse “sistema skate” que se instalou.

Ainda assim, alguns velhos — desses tempos difíceis — querem apenas continuar andando, alheios a essa grandiosidade toda.

Os velhos skatistas agora são minoria outra vez.
Não por falta de espaço — mas por excesso de conforto.
Somos os old school.

Em pistas lotadas, dá pra reconhecer um: é aquele que procura algo que já não há mais.
Somos a resistência.
E poucos têm ideia dos perrengues que passamos pra ainda estar ali, skate embaixo do braço.

Muitos moleques desfilam por aí com o mesmo andar, o mesmo estilo, as mesmas manobras.
Tudo igual, tudo parecido.
E, sem perceber, acreditam estar reinventando algo que já existe.

Quando estufam o peito por uma manobrinha, não percebem: o que fazem é obrigação — porque têm tudo.

Mas seguimos.
Seguimos porque o skate foi — e sempre será — uma forma de viver e de ver o mundo.

Pra um skatista da velha época, ele significa simplificar a vida e, nem que por um instante a cada sessão, resgatar algum fragmento daquele skate de antes.

Não é essência.
Não é verdade.
É apenas o simples: andar.


Nota Crítica & Ficha Técnica

O texto de Fábio Branco revela uma sincretização de quatro grandes matrizes literárias — um encontro visceral entre o instinto, o abismo e o sagrado. O legado. Charles Bukowski aparece na crueza das lembranças, na oralidade direta, sem verniz nem piedade.

Edgar Allan Poe se manifesta na atmosfera melancólica e nas sombras da memória — a noção de “fantasma do passado” que ronda o presente.
Nikos Kazantzakis surge no eixo ético e libertário, onde o autor encontra transcendência no ato de viver e resistir.
Frederico Manica, por sua vez, atua como eixo integrador — o olhar pedagógico e filosófico que dá forma e ritmo, elevando a vivência de rua à categoria de pensamento e cultura.

É importante destacar que, por ser o orientador literário de Fábio Branco, a influência de Manica é direta e consequencial — não como assinatura autoral, mas como fruto das oficinas literárias do Reforço Aristotélico, que vêm revelando resultados emblemáticos em meio a uma era dominada pela escrita automatizada.

Esse amálgama produz o que poderíamos chamar de realismo poético da resistência: uma voz que se move entre o chão e o símbolo, entre o suor e a epifania.

Branco escreve como quem anda — cada frase é uma passada, cada lembrança, uma lixa no coração.

É a fusão entre Bukowski (instinto), Poe (consciência do abismo), Kazantzakis (redenção) e Manica (sistematização e ética do saber) que torna este texto inaugural.

Uma crônica de pertencimento que pode ser lida com o cheiro do asfalto quente, o som das rodas girando e a alma em busca de sentido — como um poema em movimento.


Autor: Fábio Branco

Edição: AG5 – Editor-Chefe Frederico Manica
Programa: Reforços Aristotélicos — OFFICINA & MACCHINA PRODUÇÃO LITERÁRIA
Publicação: Blog Central do Skate — Cultura, Resistência e Movimento

Tags: trabalho, educação, autodesenvolvimento, motivação, sabedoria, vida, ofício, formação, aprendizado, vocação, ética, crescimento, propósito